Para que as raízes e as asas cheguem juntas.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Inavegação

Dos caminhos e descaminhos da solidão

I

A solidão
é um grito selvagem 
na infinita viagem 
de nossa expectação. 
Insulana e tirana 
fere-nos com o sílex de sua maldição. 
Ou dança às vezes crucial pavana 
tornando mais escura a nossa habitação. 
Ela vem de repente 
com seu olhar parado, de serpente. 
E nos põe em seus nichos 
a ensinar-nos, com longos cochichos, 
seu ofício final de penitente. 

II

A solidão
é bailarina imóvel em cima de um tablado. 
É o noivo enjeitado 
que volta sozinho, em meio à multidão. 
E semelha, às vezes, um velho trem parado. 
Ou um rosto no espelho, aprisionado, 
a ouvir, ao longe, o latido de um cão. 


III

Oh, a disciplina dos que vivem sós
e dos que voam às cegas, como os noitibós*! 
E todos os poemas nascem dessa fonte. 
Todos os nossos passos cruzarão sua ponte. 
E como não temos para quem gritar 
somos veleiros perdidos em seu mar. 

IV

Já fui mais sozinho
do que os retratos de velhos casarões 
onde se guarda, qual rubro vinho, 
a soma imperial das solidões. 
A solidão dos avós. 
A solidão dos rondós. 
A solidão da tia solteirona 
adormecendo aos poucos, na poltrona. 
Ou a solidão do negro acorrentado 
por haver olhado a moça, no rio, desnuda. 
A solidão graúda 
dos que envelhecem em paz e castidade. 
Ou planejam o amor, mas sem maldade, 
e são logo feridos e esquecidos. 

V

Ó solidão do desamor! 
Solidão do Cristo no Tabor! 
Solidão 
dos que perderam as chuvas e a sazão! 
E há um jogo de surpresas 
quais passos pelas devesas 
cheias de assombração. 
Mastigamos, contudo, esse amargo pão 
e há no corredor 
do mundo interior 
inexorável inavegação. 

VI

Alma sozinha e perdida, 
a solidão corre a toda a brida 
para nada. 
Mesmo assim, nasce a madrugada 
sobre as casas vazias 
e as penedias. 
E tudo, em nós, verão ou primavera, 
é uma vasta espera. 

VII

Ai, solidão: a morte no último vagão. 
Um longo e irrespondido olhar 
ou um entreparar 
de vento em nosso vão lamento. 
Ela em nós se debruça 
e soluça 
enquanto uma seresta se afasta 
qual canção azul e sempre casta 
que jamais esquecemos 
e em nós sofremos 
igual à lembrança da infância perdida. 
Ou da vida. 

VIII

Triste é o nosso sorrir.
Às vezes, chegar é o mesmo que partir. 
Somos uma longa viagem 
em que vamos perdendo rumo e paisagem. 
E no silêncio final dos caminhos 
estaremos sozinhos. 
Por isso, em minha alma indormida 
o sonho é como o apito de despedida 
de um navio tragado em rodopio. 

IX

Ônix da ausência
a solidão é a consciência 
do pélago nas almas mais sofridas. 
Chuva molhando o rosto dos suicidas 
é uma loba uivando sob o frio, 
ou o cinzento do estio. 
É o canto da araponga ao meio-dia. 
O sol da noite. A dor da poesia. 
O medo de alguém na multidão. 
Um ser a fugir da escuridão. 
E vem de Alba-Longa, talvez. Ou de Castela. 
Ou do sertão, na Cantiga do Vilela. 
Ou das longínquas ilhas 
além dos horizontes das Antilhas. 
Mas estando tão longe fica em nós tão perto 
que sentimos seu abismo abrir-se num deserto. 

X

Oh, a solidão dos espelhos
e do mugir dos bois na madrugada! 
Ó solidão — batentes de uma escada 
em que dormitam sete escaravelhos. 
E há uma flauta triste no final de tudo. 
Uma súplica em dor num espírito mudo. 
Ou o grito inesperado. O final da lida. 
O inalcançado amor. A alma já perdida 
de um bêbado num bar. Ou de alguém a buscar 
as cousas que deveriam estar e nunca estão. 
E um punhal invisível se ergue: a solidão. 
A solidão de Édipo e Narciso. 
A solidão que chega sem aviso 
ferindo os seios de luar da Amada. 
E treme na balada 
que em nós, qual soluço, sossegou. 
Ou é um grou 
voando ao solstício 
sobre a boca fatal de um precipício. 
E tudo parece o sono da verdade 
qual cavalo cego em meio à tempestade. 
Ainda assim, tentamos atravessar os nossos rios 
vendo, nas lanternas, o lento apagar-se dos últimos pavios.



Artur Eduardo Benevides



*Noitibó

[Zool.] - Ave da família dos Caprimulgídeos, comedora de
insetos, de hábitos noturnos e cujo bico é fendido até
abaixo do olho.

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